Era uma manhã comum de terça
feira, no segundo dia do ensino médio, estávamos todos animados, nós que estávamos
ali havíamos superado o ensino fundamental e chegado ao médio. Naquele dia a
primeira aula seria de geografia, o professor chegou atrasado, entrou sem dizer
nada e começou a escrever no quadro, a maior parte da turma sequer notou sua
presença. Ao terminar de escrever, ele disse a frase que mais ouvi de professores
ao longo dos anos que passei na escola:
- Prestem atenção se
quiserem, vou receber o meu salário no final do mês de qualquer maneira.
Ele foi nosso professor nos
dois anos que se seguiram.
Em outra manhã teríamos aula
de educação física, o professor chegou, colocou alguns jogos de tabuleiro sob
uma das mesas e disse que poderíamos fazer o que quiséssemos, ele precisava
dormir.
Nosso professor de educação física
dava aula em três turnos e estava sempre cansado, era comum que nos deixasse
livres para fazer o que quiséssemos enquanto dormia durante as aulas. Também não
era incomum que ele faltasse.
Certa vez ouvi uma
professora dizer a um daqueles alunos menos interessados que ele nunca seria alguém
na vida e que jamais alcançaria algo grande, pois não estudava e não seria capaz
de passar no vestibular.
Ele passou.
Todas essas histórias são verdadeiras
e aconteceram comigo entre os anos de 2010 e 2012 em duas das melhores escolas
da região noroeste de Goiânia.
Com todos esses problemas de
motivação, organização e estrutura, como esperavam que aprendêssemos?
Nos anos que passei na
escola publica não aprendi a diferenciar células eucariontes de procariontes,
nem as leis de Newton, nem inglês, nem a história da humanidade ou sobre o
clima na Ásia. Não aprendi a calcular a área da circunferência, nem aprendi a
usar todas aquelas formulas matemáticas ou sequer quando usar as malditas
crases.
Da nossa grade curricular
aprendi realmente muito pouco.
De inicio acreditava não ter
aprendido nada na escola, mas agora percebo que isso é tolice, não existe experiência
na vida que não ensine nada.
Para mim e para todos os que
estudaram ao meu lado, ou nas mesmas condições que eu, não havia qualquer
motivação para aprender, Víamos nossos próprios mestres passarem dificuldades,
aqueles que deveriam ser nosso maior exemplo de como os estudos poderiam
melhorar nossas vidas.
Muitos professores tinham se
formado ainda na ditadura militar e desde então não tinham tido a oportunidade
de se atualizarem. Precisavam dar aula em mais de uma escola para complementar
a renda e viviam a gritante desvalorização de seus salários, por muitas vezes incompatível
com sua profissão.
Não havia alegria na escola.
Todo mundo estava cansado e frustrado. Só depois de adulto entendi que é
impossível ser feliz quando seu trabalho não resulta em nada. Um professor
jamais será feliz se a estrutura e o sistema entorno dele fizer seus alunos
desistirem de aprender, ou tirarem dele a motivação de ensinar.
A escola era como um
presidio: cinza e amarelo desbotado, com grandes portões, grades nas janelas e portas
e por vezes até policiais vigiando de um lado para o outro. E é exatamente
assim que nos sentíamos, como presidiários de regime semiaberto, deixando a
escola todo dia lamentando termos que voltar no dia seguinte. Não por acaso,
por diversas vezes alunos planejaram fugas e arrombamentos dos portões da
escola.
Entediados, sem aulas, sem
lazer, maltratados e presos. Esse é o ambiente no qual se espera que um jovem
desenvolva seu potencial?
Os pais que tinham dinheiro
pagavam para que seus filhos estudassem em escolas que não tinham nenhum desses
problemas. Conheço gente que ainda no ensino médio tinha aulas de musica, línguas
estrangeiras, politica. Que tinha professores com doutorado. Colégios com
piscina olímpica e quadras de piso emborrachado. Que tinham plantões de duvidas
depois do horário das aulas. Tinham aulas de computação, com computadores que
funcionavam de verdade. Ganhavam até DVD’s com o conteúdo estudado em sala.
Minha família mal tinha
dinheiro pra comprar comida.
Posso não ter aprendido
matemática ou química, mas aprendi que na vida nem todos tem as mesmas
oportunidades ou mesmo oportunidades parecidas. Que inclusive alguns não têm
nenhuma oportunidade.
Dos 40 alunos que estudaram
comigo no ultimo ano do fundamental, menos da metade chegou ao ensino médio.
Dos 120 alunos que junto comigo entram no médio, menos de um terço chegou ao
terceiro ano. Dos 23 alunos da minha turma do terceiro apenas 6 chegaram ao
ensino superior.
Ao longo dos anos vi meus
amigos mais próximos concluírem que não valia a pena estudar. Vi muitos deles
desistirem, muitos seguirem caminhos sem volta.
Vi muita gente sem
oportunidades para seguir.
Não estávamos preparados
para o mundo lá fora. A escola publica não nos preparou para brigar por nosso
futuro.
A primeira vez que nosso
caminho cruzou com o dos jovens da elite foi no vestibular, estávamos mal
nutridos e desarmados indo enfrentar soldados, que se prepararam a vida toda
para nos enfrentar. Éramos como amadores enfrentando profissionais treinados.
Não tivemos chance.
O vestibular é a barreira
definitiva de segregação social. nele não é testada a sua capacidade de cursar
a faculdade, mas a sua origem. Aqueles que tiveram que contar com o ensino
público não tem chance, pois os testes cobram uma serie de conhecimentos que
são ensinados apenas nas escolas particulares.
Sim, eu passei no
vestibular. Alguns poderiam argumentar que sou um exemplo de que as
oportunidades são dadas, e jogar nas costas do indivíduo a responsabilidade por
ele não ter conseguido um lugar ao sol nas trevas dos nossos abismos sociais, o que seria imaturidade.
Tenho maturidade e consciência
para compreender que se consegui foi em consequência de muitas condições
favoráveis que tive. Em grande parte por ter tido sempre uma facilidade acima
do normal para aprender. Em parte por ter conhecido alguns poucos bons
professores que acreditaram e me incentivaram a lutar. Em parte também por ter
me criado “sozinho” o que me permitiu desenvolver meus próprios conceitos de
certo e errado e que acima de tudo me permitiu experienciar muitas faltas e
excessos que mais tarde contribuiriam para que eu tivesse maturidade e senso crítico.
O que de certa forma me capacitou para brigar por minha vaga na universidade.
Ainda assim tive que pagar
um curso pré-vestibular com meu primeiro emprego para preencher as lacunas que
o ensino público deixou.
Lembro-me bem que a escola
pública foi o último lugar na minha vida que frequentei onde a proporção de
negros presentes era coerente com a proporção de negros da cidade. De lá para
cá, superada a barreira da segregação do vestibular, fui passando a frequentar
espaços elitizados, como a própria universidade, que são dominados por brancos.
Talvez se eu fosse negro ou
mulher nunca tivesse conseguido.
O que aprendi na escola
pública? Aprendi sobre injustiça e desigualdade. Sobre o mundo real, sobre a
vida ser dura. Sobre preconceito, racismo, machismo e sobre barreiras
intransponíveis. Aprendi a ter a humildade de saber que se hoje tenho uma vida
melhor é porque tive mais sorte do que mérito. Sorte daqueles que tem, pois os
que não têm não tiveram escolha.
Aprendi que todos mereciam
uma chance de brilhar, mas que nem todos terão.
Essas coisas que tomo como
óbvias e me formam como pessoa e como cidadão, não posso assumir que sejam
óbvias para todos. Nenhum texto nem nenhuma imagem consegue substituir a
experiência.
O que aprendi na escola
pública não ensinam nas melhores escolas particulares e, diferente das fórmulas
de matemática, são coisas que levo para a vida toda.
Johnathan Alves Damasceno de Barros
Referencial teórico e textual: